Fonte: Financial Times
31/03/2020 – 13h03 - Laboratórios farmacêuticos vêm recebendo cada vez mais pedidos para que abram mão de seus direitos de patente de vacinas contra o coronavírus e de tratamentos que tenham potencial para salvar vidas, em meio à corrida das autoridades pelo mundo para limitar as mortes provocadas pela pandemia.
Dirigentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Unitaid, um grupo da Organização das Nações Unidas (ONU) que financia inovações na saúde pelo mundo, elogiaram a proposta da Costa Rica de que empresas voluntariamente concordem em agrupar e compartilhar sua propriedade intelectual de todas as intervenções médicas relacionadas ao coronavírus — incluindo tratamentos, vacinas e diagnósticos.
Isso permitiria que governos ou laboratórios farmacêuticos de medicamentos genéricos produzissem e vendessem todos os produtos a preços muito mais baixos do que os atuais no mercado mundial.
Marisol Touraine, presidente da Unitaid e ex-ministra da Saúde da França, disse ao “Financial Times” que “circunstâncias extraordinárias” exigem “soluções extraordinárias”.
As empresas farmacêuticas já agruparam a propriedade intelectual no passado, o que permitiu que tratamentos contra o HIV/aids, tuberculose e hepatite C fossem distribuídos em países de baixa renda a preços acessíveis. A proposta sobre o coronavírus, por sua vez, incluiria todos os países do mundo.
Daniel Salas, ministro da Saúde da Costa Rica, disse ao “Financial Times” ter esperanças de que a OMS siga adiante com o plano em breve.
Em comunicado, a OMS informou estar comprometida a que haja um acesso equitativo, inclusive de intervenções relacionados à covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. “Estamos explorando todos os canais para assegurar que as pessoas que as precisem tenham acesso a produtos eficazes e seguros contra a covid-19”, disse.
Na segunda-feira, a vasta mobilização dos grupos mundiais de saúde para combater o coronavírus ganhou força, depois de a Johnson & Johnson anunciar uma possível vacina que poderia estar disponível no início de 2021 e de a Abbot Laboratories lançar um kit de teste rápido para detectar a infecção.
Laboratórios farmacêuticos normalmente guardam com todo o cuidado suas patentes mais lucrativas, que vencem anos depois de ter seu registro solicitado.
Na semana passada, a Gilead Sciences mudou de posição e renunciou à designação de um medicamento órfão” (ODD, na sigla em inglês) nos Estados Unidos que garantia status especial a seu tratamento potencial contra o coronavírus Remdesivir, e o fez apenas 48 horas depois de divulgá-lo pela primeira vez.
A Gilead Sciences informou ter conhecimento da proposta da Costa Rica e que iria avaliar qualquer programa uma vez que fosse definido pela OMS.
A AbbVie, que produz um tratamento potencial conhecido como Kaletra, abriu mão dos direitos de propriedade intelectual do medicamento depois de Israel ter emitido uma “licença compulsória” que permite ao país usar a droga para combater o coronavírus sem o consentimento do detentor da patente.
Alemanha, Canadá, Austrália e Chile tomaram medidas ou estudam tomá-las para aplicar licenças compulsórias com mais facilidade.
A suíça Roche, que produz kits de teste para o vírus, aceitou compartilhar a receita de seu líquido de teste com o governo holandês, depois de parlamentares a acusarem de racionar o fornecimento e, assim, reduzir significativamente a capacidade nacional de fazer testes.
A empresa não quis comentar a falta, mas destacou que não há proteção de propriedade intelectual sobre o líquido.
Entre os defensores da proposta da Costa Rica estão os ex-chefes de patentes da suíça Novartis e da americana Gilead.
Membros do Parlamento Europeu e vários grupos, como o Médicos sem Fronteiras, disseram, separadamente, que não se deve permitir monopólios na luta contra o novo coronavírus.
“A solidariedade não é apenas uma questão de ponto de vista e abordagem humanitária, também é uma abordagem muito racional. Para combater uma pandemia mundial, precisamos de uma resposta mundial e precisamos proporcionar acesso equitativo ao tratamento.”
Jamie Love, da Knowledge Ecology International, um grupo de defesa da propriedade intelectual, disse que “este é um momento, uma crise, que exige que as pessoas cooperem e cuidem umas das outras.”
“O esforço para agrupar os direitos de tecnologias e dados globalmente tem por objetivo fazer as coisas andarem mais rápido e ter resultados mais iguais, globalmente.”
A Sanofi e a Eli Lilly, que pesquisam vacinas e possíveis tratamentos, não responderam os pedidos para comentar o assunto.
A IFPMA, associação internacional dos laboratórios farmacêuticos, disse que os efeitos da proposta de agrupar os direitos na atual pandemia provavelmente seriam bem limitados. A associação, no entanto, disse que a indústria tem um “forte senso de responsabilidade” para agir em conjunto com governos e sistemas de saúde pelo mundo.
Bruno Bulic, analista especializado no setor farmacêutico na Baader Helvea, disse que a indústria ficou sob os holofotes nos últimos anos diante das acusações de cobrar preços abusivos. “O tempo acabou provando que os oponentes da indústria estavam errados, e a melhor forma para isso é levantar a cancela do pedágio”, disse.